ARTE NAIF
O termo “arte naif” aparece no vocabulário artístico, em geral, como sinônimo de arte ingênua, original e/ou instintiva, produzida por autodidatas que não tem formação culta no campo das artes. Se caracteriza pela ausência de técnicas usuais e pela visão ingênua do mundo. As cores brilhantes e alegres, a simplificação dos elementos decorativos, o gosto pela descrição minuciosa, a visão idealizada da natureza, são alguns dos traços considerados típicos dessa modalidade artística.
São quadros muito coloridos mesmo, e às vezes, até divertidos, onde as obras são marcadas pela simplificação das imagens sem nenhuma preocupação com a proporção, planos, perspectivas, equilíbrios de cores ou quaisquer outros padrões técnicos.
O que aproxima todos esses artistas, sejam franceses, norte-americanos ou brasileiros, é a consciência da autonomia do espaço pictórico, o uso expressivo e ornamental das cores, o toque onírico que diferencia o universo criado da realidade e o sopro poético presente nos quadros.
Na III Trienal de Arte Popular de Bratislava, em 1972, na então Tchecoslováquia, por exemplo, o Brasil se destacou ganhando o prêmio de melhor representação nacional. "Na ocasião, surgiu uma nova tentativa de nomenclatura, porque toda arte popular foi agrupada sob o nome de arte ínsita, do latim insatus, inato. No entanto, nos últimos anos, o termo naif superou todos os demais, sendo aceito internacionalmente", conta o crítico Geraldo Edson de Andrade.
Há até quem diga que os quadros
dos primitivistas se assemelham à pintura de crianças. Anatole Jacovsky
discorda e estabelece as diferenças: "A pintura das crianças não é obra de
arte. Para elas, não passa de divertimento, enquanto para os primitivistas
trata-se do objetivo de suas vidas. Eles abolem o tempo e remontam às fontes, a
esses paraísos infantis perdidos e, afinal, reencontrados. O naïf começa onde
morre a criança".
O crítico de arte Martin Green,
ao discorrer sobre arte naïf, afirma que a arte conhecida como primitiva é
privada de passado e futuro. "Apropria-se do instante e o imortaliza para
sempre. É fruto de uma pura tensão artística, não de uma preocupação comercial:
o que aparece é o sentido de alegria e estupor perante o mundo, como se o
estivéssemos olhando pela primeira vez. Essa pintura é o primeiro bater da
existência."
O ensaísta iugoslavo Oto
Bihalji-Merin, em El Arte Naïf, julga que a essência e o caráter da arte naïf
brotam no campo anímico da inocência e da simplicidade. "Se o artista
renuncia a elas, põe em perigo o clima específico de sua arte. Ao longo dos
anos ou décadas, pode aperfeiçoar sua técnica e mover-se com maior liberdade em
termos da composição. Porém, se sua sensibilidade e receptividade diminuem,
começa a se repetir e a produzir em série, podendo ocorrer a perda da
ingenuidade e da espontaneidade imaginativa. O interessante da pintura naïf é
que se trata de um estilo que não se aprende. Ele nasce com quem o executa.
Cada pintor naïf tem um estilo próprio e nos obriga a entrar em contato com a
criança pura que existe em nosso interior. Isso porque as imagens naifs podem
tanto ser fantasias delirantes, como caricaturas grotescas ou
hiper-realistas."
Como não é pintura acadêmica, não
se estuda, mas se sente. Marcada por imagens do cotidiano e pela pureza de
traços, cores e formas, a arte naïf espalha-se por França, Haiti, Iugoslávia,
Itália e Brasil, mantendo um mercado bem específico. "A arte naif, ao não
se incluir no variante vaivém dos estilos, manifesta-se como uma arte submetida
às suas próprias leis. Não é uma arte contra os modernos, apenas uma parcela
artística mais subestimada", diz Bihaljin-Merin. "Na obra dos
pintores naifs, não há perspectiva, o desenho é rústico e quase não há mistura
de cores, já que eles não têm conhecimento técnico", diz Geraldo Edson de
Andrade, co-autor, ao lado de Jacques Ardies, do livro Arte naif no Brasil.
Para Ardies, a arte naif é um
estilo que existe há milênios, desde quando o homem desenhava cenas de caça nas
paredes das cavernas. "Os artistas naifs são forçosamente autodidatas no
sentido que eles não receberam influência ou dirigismo de um professor de Belas
Artes. Eles começam a pintar por impulso e procuram resolver as dificuldades
técnicas com meios próprios, sendo perdoados quando as suas figuras não são perfeitamente
desenhadas ou quando aparecem erros de simetria e perspectiva. Porém, a
experiência da prática aos longo dos anos pode proporcionar ao pintor naïf uma
técnica apurada e certeira", explica Ardies.
"A pureza com que pintam
mostra que eles não estão querendo provar nada, apenas exprimir o sentimento
por meio do pincel. Essa é a força da arte deles", completa Lucien
Finkelstein, fundador do Museu Internacional de Arte Naïf (Mian), no Rio de
Janeiro, criado, em 1995, num casarão do Bairro de Cosme Velho, com o maior
acervo do mundo no gênero, reunindo cerca de 8 mil obras de 130 países,
incluindo aqueles em que a arte naïf é mais forte, como Iugoslávia, Haiti e
Equador, e de todos os Estados brasileiros.
Para Ardies, especializado em
arte naïf desde 1979, o destaque da arte primitivista reside justamente na
total liberdade de criação do artista, que se expressa com espontaneidade e com
inocência. "Em geral, o artista naïf oferece uma visão interior, repleta
de cor, criando um mundo para si próprio. No Brasil, o movimento cresceu a
partir de 1937 com Heitor dos Prazeres, Cardosinho e Sílvia. A arte naïf
brasileira, portanto, não toma emprestada a inspiração da vanguarda parisiense,
mas reflete uma realidade nacional. Sem mimetismo, extremamente rica e variada,
é autêntica e, na maioria das vezes, otimista e alegre. Ela reflete o país
tropical, generoso em sua vegetação, aberto em sua gente. Não existe país que
melhor sirva a este estilo. Hoje, pela diversidade entre as regiões e os povos
que a compõem, a arte brasileira tem seu lugar de destaque no cenário
mundial".
Qualquer estudo sobre a arte naif brasileira deve passar por
Heitor dos Prazeres (1898-1966), parceiro de Noel Rosa na célebre música Pierrô
apaixonado e premiado na I Bienal Internacional de São Paulo, em 1951, em cujo
júri estava o crítico e historiador Herbert Read, um dos nomes mais respeitados
da historiografia da arte mundial.
Em Bienais posteriores, Grauben Monte Lima, Elisa Martins da
Silveira e José Antonio da Silva estiveram presentes. No exterior, a pintora
Iracema Arditi foi uma das maiores responsáveis pela divulgação da pintura
naïf, principalmente pelas várias exposições que organizou na França.
José Bernardo Cardoso Jr., o citado Cardosinho (1861-1947),
admirado por Portinari e com uma obra no Museu de Arte Moderna de Nova York
(Moma); Chico da Silva (1910-1985), descendente de índios, menção honrosa na
Bienal de Veneza, em 1966; o índio Amati Trumai, descoberto pelos irmãos
Villas-Boas no Parque Indígena do Xingu, e Antonio Poteiro, oleiro de profissão
e ceramista de talento que chegou às telas estimulado pelos pintores Siron
Franco e Cleber Gouveia, são nomes obrigatórios da arte naïf nacional.
Há ainda Maria Auxiliadora, (1935-1974), doméstica e
passadeira descoberta pelo especialista alemão Ronald Werne na Praça da
República; Lia Mittarakis (1934-1998), que ao ter um de seus quadros como capa
da revista Time dedicada à ECO -1992, conferência mundial do meio ambiente
realizada no Rio de Janeiro, foi a primeira artista brasileira a ter uma obra
reproduzida nessa revista; Elza O. S., célebre por pintar jovens vestidas de
noiva, sonho pessoal que nunca realizou; além de Rosina Becker do Valle Pereira,
cuja inspiração reside no folclore brasileiro, e a ex-secretária executiva
Helena Coelho, artistas ligados, desde 1992, às Bienais de Arte Naïf do Brasil,
realizadas pelo Sesc de Piracicaba. "Nossa idéia é ser um centro de
referência dessa arte no Estado", afirma Antônio do Nascimento, curador da
Bienal Naifs do Brasil.
"A descoberta do mundo das
tintas e dos pincéis acaba se transformando, para uma parcela significativa
desses artistas, em uma ótima oportunidade de serem aceitos no seu grupo e de
se integrarem à sociedade. E, quando conseguem, aumenta a possibilidade de eles
serem reconhecidos e valorizados, independentemente de suas origens, dos seus
padrões culturais e dos seus bens materiais", argumenta Nascimento.
O psicanalista Carl Jung chegou a
afirmar que "Os pintores naifs representam os últimos ecos da alma
coletiva em vias de desaparecimento". O colecionador Lucien Finkelstein
concorda: "Afirmo com plena convicção que, fora de nossas fronteiras, os
pintores naifs do Brasil são autênticos porta-bandeiras da pintura brasileira
de todas as tendências e de todas as épocas".
A grande questão é o que
especialistas em arte, como os conceituados Louis Pauwels, Selden Rodman, Max
Fourny, Anatoli Jacovski, Heléne Renard e H. Wiesner vêem na obra naif. O
crítico Enock Sacramento responde: "Experts de visão acurada,
freqüentadores das Bienais de Paris e de Veneza, da Documenta de Kassel e da
FIAC, perceberam logo que a maioria das manifestações da vanguarda mundial não
levava a nada, apesar de glorificada momentaneamente pela mídia e apresentada
como ‘arte de ponta’. Pouco a pouco, os críticos internacionais estariam mais
dispostos a aceitar a arte naif". "Eles se tornaram, de fato, mais
sensíveis ao fascínio da arte bruta, sincera, espontânea, calorosa, colorida e
fortemente temperada do pintor naif", finaliza Sacramento.
"O Brasil é um berço da
pintura ingênua. As solicitações sensoriais criadas por um país tropical e por
seu folclore, ligadas à liberdade gerada pela arte moderna, fizeram surgir nos
campos e nas cidades milhares de ingênuos — a maioria sem qualquer expressão.
Sobram poucos, uns trinta, cujas qualidades vão além do simples colorismo bruto
e das incorreções anatômicas para chegarem à arte propriamente dita",
avalia o crítico paulista Flávio de Aquino.
Encontrar talentos no universo
dos chamados primitivos é um grande e fascinante desafio. Para isso, é preciso
conhecer o maior número possível de artistas do Brasil e do Exterior, buscando
as características que tornam alguns desses pintores expoentes do que há de
artisticamente melhor, dando-lhes destaques não como meros naifs, mas
colocando-os entre os principais nomes da arte universal, independente de
categorias, estilos e nomenclaturas.
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Estou impressionada com as pinturas que vi. Não sei me expressar especificamente, como também não conhecia a arte não é. Só tenho a dizer de coração - Parabéns aos Artistas dessas belas representações artísticas.
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